Tratamento Ou Tortura?
Histórias Inesperadas

Fazia várias semanas que eu estava hospitalizado. Depois de cinco terríveis cirurgias, os últimos dias haviam sido suficientes para que eu perdesse aproximadamente vinte quilos, mesmo estando com o corpo consideravelmente inchado.

Creio que fazia menos de dois dias que eu havia saído do coma e ainda estava me adaptando à realidade de ser uma pessoa que havia miraculosamente escapado da morte, estando ainda ligado aos aparelhos que controlavam o funcionamento do meu organismo mantendo-o estável o bastante para que o mesmo pudesse continuar reagindo e, finalmente, se recuperar.

Foi quando, numa das trocas de enfermeiras, ela entrou em seu turno de trabalho. Era uma pessoa já madura, aparentando ter anos de experiência profissional, e chegou espalhando sorrisos e gentilezas. “Meu nome é Suzana, mas todos me chamam de Suze; eu sei que vamos nos dar muito bem”, disse ela aparentando ser uma pessoa muito alegre e cordial.

Não demorou muito para que eu constatasse, tanto pela sua aparência como pelas músicas que logo começou a cantar, que ela fazia parte de alguma igreja cristã tradicional, pois as melodias que cantava me eram familiares, embora com letra diferente.

Pouco tempo foi necessário para que eu descobrisse que as coisas não estavam bem. Embora aparentando piedade, aquela enfermeira era uma pessoa insensível e cruel. Foram apenas dois turnos nos quais ela me atendeu - aquele e outro dois dias depois - mas foram suficientes para que eu tivesse uma pequena noção do significado da palavra tortura.

Eu ainda estava em estado grave, com o abdome todo dilacerado pelas cirurgias que, dada à gravidade das mesmas, não permitiram que o mesmo fosse suturado, estando ainda aberto. Eu estava extremamente fraco depois de muitos dias recebendo apenas nutrição intravenosa e sem poder ingerir nem sequer uma gota d'água. Mesmo assim, era preciso muito pouco para que eu vomitasse, enfrentando frequentes crises de vertigem, mesmo estando deitado e com muito pouco movimento.

Devido ao meu estado, a experiência pela qual passei na hora do banho, por exemplo, foi tal que é difícil descrever; apenas posso dizer que é horrível estar numa situação na qual não se sabe de que lado está o teto ou onde está o chão, enquanto a única coisa a se fazer é tentar segurar a respiração e tentar suportar até terminar.

Algum tempo antes da chegada dela o cirurgião que havia me operado e que estava acompanhando bem de perto o meu caso enviou-me um tubo de pomada que, segundo a orientação pessoal dele, eu mesmo deveria passar de vez em quando no braço e na perna, sem esperar a intervenção de qualquer das enfermeiras. Essa pomada, depois de ter sido ministrada a mim pela primeira vez foi-me entregue para que ficasse comigo na cama, ao lado do travesseiro, para que eu pudesse passar tranquilamente, com a freqüência que fosse possível, especialmente nos horríveis hematomas que cobriam meu braço por causa de uma grande quantidade de sangue que havia coagulado junto à pele.

Eu estava terminando de ler a bula da pomada, para passar o tempo e entender quais seriam os seus benefícios, quando aquela enfermeira se aproximou, arrebatando das minhas mãos a bula e o tubo de pomada com a caixinha. Eu tentei explicar a ela o que o médico me havia dito, creio que na manhã daquele mesmo dia; mas ela não deu a menor importância, dizendo algo mais ou menos assim: “Os médicos falam, mas aqui quem decide o que vai ser feito somos nós”. Em seguida ela amassou a bula e a jogou no lixo enquanto levava a pomada para longe. Horas depois quando eu perguntei por que ela tinha jogado a bula no lixo ela desmentiu, mesmo tendo feito aquilo na minha própria frente. Essas foram apenas algumas das coisas inesperadas que aconteceram.

Durante todo o período de trabalho dela era possível ouvi-la cantando - e sua voz não era ruim. Mas aquelas músicas, que deveriam ser as coisas mais lindas que eu ouviria naquela UTI, se tornaram o sinete da hipocrisia e algo tão abominável que eu não duvido que tenha causado repulsa até nos anjos. Aquela enfermeira não sabia cantar. A melodia saia bem, as notas soavam afinadas e a letra poderia ser compreendida; mas o cântico dela se tornou tão incoerente que talvez tivesse havido menos escândalo se ela tivesse mantido a boca fechada. Será que ela sabia o que estava fazendo? Será que ela compreendia o significado dos seus atos? Ou estaria fazendo tudo aquilo na inocência? Não sei; e não tenho a intenção de avaliar os motivos ou o coração dela. Mas não posso deixar de pensar que, se ela tratava todos os pacientes aos seus cuidados daquela forma, muitos deles acabaram tendo uma péssima impressão do cristianismo.

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Texto extraído do livro
Histórias Inesperadas
da Editora Luzes da Alvorada.
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